Coito consumado; sim, a ruiva tinha pêlos ruivos a rodear a vagina. Depois de se vir, Sax tirou o seu instrumento do corpo dela e tentou dizer-lhe qualquer coisa como estás bem. Ineficaz, antes sequer de terminar a pergunta ela já se desconstruía em golfadas de vómito para cima do tapete do quarto. Quando se virou os olhos estavam mortos e o seu corpo mais branco do que o normal. Sax tapou-a e foi dormir para a sala. Aquele sofá competia com a cama para ter a primazia do corpo boémio de Sax. A cama ainda levava alguma vantagem, mas pouca, ultimamente ele olhava cada vez mais para a televisão e adormecia. Mas só olhava para ela, na sua cabeça imaginava Miles a tocar com Monk, Brubeck numa jam com Blakey e às vezes, em noites de whisky a mais, Mozart com Hancock, uma cacofonia a quatro mãos. Hoje Sax ia limitar-se a adormecer, o sexo não dava espaço para mais.
Manhã. Sax acorda. Olha a janela e a chuva deu lugar a um céu farrusco mas azul. O primeiro bocejo e espreguiçar do dia, mão direita a coçar o cabelo e a descoberta de um pelo ruivo perto da boca. Sax sorriu.
Às vezes dizem-me "só mesmo tu", outras dizem "tu não existes mesmo"...em que é que ficamos? Eu acho que existo, pelo menos quando me corto faz sangue e, até hoje, sempre que adormeço volto a acordar. "Só mesmo tu", sim, o meu universo sou eu e só eu, não no sentido egoísta mas no sentido único da existência, eu só existo para mim, só eu é que sei como é ser eu, portanto só mesmo eu.
E agora?
Como se chama a instituição que tem a sua fundação numa manjedoura colocada numa gruta de Belém e que hoje em dia é uma das "empresas" mais lucrativas e abastadas do mundo? Igreja, não é?
Estaremos perante o capitalismo especulativo mais puro ou estaremos perante um caso de histeria colectiva que dura há séculos?
Capitalismo especulativo, nasceu um menino, esse menino tem poderes, esse menino cresceu e sacrificou-se por nós todos, foi para o céu ter com o pai e agora devemos prestar vassalagem aos seus ideais para termos um lugar nosso lá em cima. Na minha terra isto chama-se boato.
O mesmo boato se aplica para a histeria colectiva, mas aí o caso é ainda mais complicado, é que manter uma mentira tão intrincada não é fácil.
Seja como for a Igreja deve ter tido, desde sempre, os melhores gestores e publicitários da História, parece-me urgente ter padres e outros que tais nos governos mundiais.
Salvé esta religião que no natal serve tão bem os interesses do consumismo.
Já fora do clube e de mão dada com a ruiva, o suor do interior perdia o sal e transformava-se em chuva simples. A ruiva enroscava-se em Sax e conservava um sorriso estúpido. O inexpressivo rosto de Sax não tentava olhar para ela, vinda da escuridão era aí que ela permaneceria, não tencionava sequer ligar alguma luz em casa, as persianas abertas deixavam entrar os farrapos de luz que vinham da rua, era suficiente para despir um corpo.
"Estranho a preocupações de baixo patriotismo, O Comunista não reconhece fronteiras; a sua pátria é a Pátria do Homem. Operando num sector de 360 graus, dirige os seus ataques para onde quer que se patenteie a iniquidade." in, O Comunista, nº1, Maio de 1923
O suor condensado no tecto era mais abundante do que o normal. Os pingos que caíam em volta de Sax entravam dentro da partitura do seu corpo. Era noite de bossa-nova, Brasil com cheirinho a uma sala escura e cheia de pessoas embriagadas e prontas a dançar. No clube só se dançava em noite de bossa-nova. Sax fechava os olhos durante toda a actuação dessas noites, as saias que rodavam até ele distraiam-no.
No canto do fundo estava um grupo especialmente animado, tinham cabeleiras berrantes, homens e mulheres, fumavam charutos e bebiam demais. Quando a noite terminou, três deles estavam a dormir nos sofás. Dois homens e uma mulher ruiva, rabo grande mas firme, mamas grandes mas firmes, dedos finos. Sax quis ver se os dedos dela também eram firmes, pegou-lhe na mão, soprou para o pescoço e levou-a até à rua.
Morreu Carlos Pinto Coelho, aqui fica o meu simples obrigado a uma das pessoas que com o programa "Acontece" me começou a despertar um interesse mais sério nestas coisas da cultura. Há aqueles que morrem só e há aqueles que morrem mas que fazem falta.
O Inverno já ia a meio mas dos dedos de Sax ainda caíam folhas de Outono. Não se levantava da cama como os outros, desde o primeiro piscar de olhos que o seu corpo balançava em câmara lenta. Sax era pesado, ponderado e coordenado. O pé esquerdo não se limitava a seguir o movimento do direito, seguia-o porque queria, porque sabia que Sax o levava para algum sítio onde estaria bem.
Na rua a neve continuava a cair e os apressados passos de uma Segunda à tarde ficavam bem marcados no passeio e no alcatrão escondido. Era altura de puxar o lustro ao saxofone, de o tirar da caixa, cuidadosamente, de o acariciar, desmontar e limpar, milímetro a milímetro. No final desta operação o saxofone voltava para dentro da caixa que não era imediatamente fechada. Sax passava sempre cinco minutos hipnotizados a olhar para a sua vida dentro da caixa.
Noite de Póquer em casa de Sax. Começava com cerveja e acabava no inevitável whisky. Sax não costumava ter muita sorte na mesa mas era bom anfitrião. Hoje sentia-se inspirado e começou a jogar de forma agressiva, subia todas as apostas e não desistia sem ver as cartas do flop. Par de reis para começar, nada mau, tinha a certeza que esta aposta era dele. Assim foi, umas poucas fichas na mão antes do turn. O jogo nunca tinha menos de quatro horas mas quando o whisky estavas prestes a terminar, os dedos dos participantes da mesa tornavam-se mais nervosos do que o habitual, havia quem dedilhasse cordas de guitarra no ar, havia quem imaginasse teclas de piano no pano verde e aveludado da mesa, havia quem agitasse no ar um par de mãos sincronizadas. Sax mantinha-se impávido, batia o pé ligeiramente, marcava o compasso da noite, sabia que daí a umas horas, no clube, iria ser ele a estrela apesar de mais uma vez ficar sem fichas antes dos outros.
Sax perdeu o jogo mas ganhava palmas enquanto enchia o piano de copos vazios de whisky.
Naquela noite o clube estava mais enfumarado do que nas noites anteriores. Sax não estava completamente desafinado mas os copos de whisky espalhados pelo piano eram mais do que os possíveis. As notas saíam ao lado mas tudo continuava a bater certo. Na mesa da frente uma loira nada charmosa fumava um cigarrilha numa última tentativa de ser tornar sexy. Sax tocava de olhos semicerrados, espreitava as notas e espreitava a loira. Fechou-os, as notas tinham vida própria e a loira não se safava, nem com cigarrilha.
Quando a penúltima música da noite terminou, Sax olhou para o balcão e levantou as sobrancelhas na direcção do barman, dentro de vinte e quatro segundos outro copo de whisky estaria em cima do piano. Um copo cheio, só com uma pedra de gelo. Agora, Sax já podia tocar a última música.
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