Tenho vergonha de chorar, principalmente se for em público. Deve ter sido por isso que fiquei por casa, ontem e hoje, a despedir-me do Eusébio. Em 2013 tive razões de sobra para chorar, quer pelas minhas, quer pelas dos outros. Era escusado 2014 iniciar-se em pranto.
Este luto é daqueles irracionais, porque gostar tanto de um clube é irracional, porque gostar tanto de uma pessoa que nunca vimos só porque ela chutava em força e ao ângulo é ainda mais irracional. Mas o inexplicável torna-nos mais leves, mais humanos. Querer explicar sempre tudo dá dores de cabeça.
O Fernando Couto está na igreja, não resistiu a tocar o caixão depois de comungar. Está desde o início com os olhos cheios daquela água salgada chata, marota, a querer escorrer-nos pelas rugas. Mas o Couto é força, contem-se. Também deve ter vergonha. Apetece-me abraçá-lo, eu que tantas vezes o insultei pelas entradas brutas contra os meus meninos de vermelho. Mas desde ontem que é assim, nós, os que gostamos de futebol, fizemos tréguas e juntámos os cachecóis e as bandeiras e concentrámo-nos na Catedral da Luz, a casa do Eusébio. Ele continuará sempre lá, coroado como o Rei que é.
Os milhares que desde ontem foram à Luz, os que se esticaram pela cidade em aplausos, os que estão à porta do cemitério, encharcados, não deixam margem para dúvidas: Eusébio deu forças ao povo, e o povo quer despedir-se do Pantera Negra. Como escreveu ontem o Goucha, Eusébio elevou o nome de Portugal a um patamar que parecia inatingível, "numa altura em que o país nada mais tinha para exportar que sol e Fátima."
E é por isso que as televisões dão quase ininterruptamente as imagens desta homenagem. Não adianta criticar, resta aceitar, ou desligar a televisão. Se há coisas inevitáveis esta é uma delas, já toda a gente sabia que ia ser assim. Eusébio não era apenas um jogador de futebol, era um símbolo de esperança e de muitas alegrias. Fazer directos da viagem da selecção até ao estádio é exagero, mostrar o cortejo de despedida de um deus é sentimento. E serviço público. Não dizemos adeus a símbolos apenas com notas de rodapé.
E não se arreliem os que têm urticária com esta coisa do país, do patriotismo, dos símbolos nacionais - eu às vezes também tenho. Eusébio da Silva Ferreira nasceu em Moçambique, no bairro de Mafalala, em Maputo. Português, à força de uma ditadura colonialista que o usou. Jogou no Benfica e em mais clubes do país e do estrangeiro, mas foi com a camisola de Portugal que se fez em mito, em 1966, no Mundial da Inglaterra. Eusébio é dos poucos portugueses que faz desaparecer as fronteiras geográficas e políticas, sem que essa seja a sua luta. Não só a imprensa internacional fez notícia com a morte do Rei, como em variadíssimos países a palavra "eusebio", foi a mais, ou das mais pesquisadas. Quem morreu, foi um dos melhores jogadores da História do futebol, e os melhores podem ter país, mas perdem o direito a ter uma pátria. São do Mundo.
A televisão de casa está estragada, não dá cores. Ter visto o cortejo fúnebre como se o aparelho fosse de 1966, fez-me lembrar as imagens de um outro cortejo nas mesmíssimas ruas de Lisboa, o de homenagem aos Magriços. Hoje, Eusébio juntou esses dois países, e não é certamente por sua culpa que o país continua a preto e branco. E o povo de Eusébio, ontem e hoje, soube apupar quem lhes rouba as cores: Pedro Passos Coelho, um Primeiro Ministro demasiado parecido com um certo Professor Doutor.
Feliz a jogar futebol, foi pela sua felicidade que se sacrificou. Fisicamente, com várias operações e jogos de joelho impraticável; financeiramente, por ter sido proibido de sair do país; politicamente, por provavelmente ter sido obrigado pelo regime a calar a dor do seu povo de Moçambique. E diz o João Semedo: "nunca vi nem ouvi da boca de Eusébio qualquer declaração laudatória da ditadura e, do que me lembro bastante bem, foi da forma entusiástica com que recebeu a independência de Moçambique. E recordo, também, as suas palavras frequentes de apoio e solidariedade às vítimas das desigualdades e da extrema pobreza que mancham o mundo contemporâneo, seres humanos dos quais Eusébio nunca se esqueceu."
Quando um dos nossos morre temos o direito de lhe dizer adeus em recolhimento. Mas elas já sabiam que ia ser assim. Despediram-se do marido e pai com os iguais ao lado. Rui Costa, Luisão, Cardozo e Jorge Jesus. Os que sabem que as famílias do futebol sofrem com a distância, com os estágios, com as bolas na trave que os deixam de mau humor, com as lágrimas das finais perdidas. Despediram-se do mito, sem direito a recolhimento, elas compreendem e orgulham-se.
Pois é, Rui Costa, Luisão, Cardozo e Jorge Jesus. Junto à cova enlameada que se fechava. Rui Costa, mais um "10" imortal. Luisão, um capitão à Humberto Coelho. E Cardozo e Jesus, até ao fim. Desentenderam-se em público, choraram em público. É futebol. Quem já viveu num balneário entende.
Tenho vergonha de chorar, principalmente se for em público. Quando morreu o Fehér, estava sentado no sofá, em Viseu. O Miklos caiu no tapete, eu fiquei imóvel e mudo até ele abandonar o campo em direcção ao hospital, ainda havia esperança. Depois subi as escadas e fui chorar para o quarto, chorar à frente da nossa mãe é ainda pior que chorar em público. Entretanto o Miklos não voltou mesmo. No jogo seguinte, contra a Académica, o silêncio mais arrepiante. 65 mil de cartolinas pretas na mão, tapando o vermelho do nosso amor. Ali chorei, chorámos todos, sem vergonha.
Dói quando morre um dos eternos, dói quando um dos nossos morre em campo. Quem não gosta de futebol não entende, mas é como se perdêssemos um familiar, dos mais queridos. Pode ser ainda mais doloroso que isso, porque dos familiares ficam as recordações, mas tivemos os abraços, as zangas e os risos, vivêmo-los. Dos que amamos pela camisola só ficam as recordações e as emoções, não são humanos, estão-nos nos sonhos.
Guardo o sorriso. O último do Miklos antes de caír, os muitos do Eusébio durante todos os golos. E que bonitos eram os sorrisos do Miklos e do Eusébio. E que bonitos homens eram os dois. O futebol pode ter arte, bailado, força, inteligência, suor. Eusébio tinha isso tudo, e isso fez do Rei um dos jogadores mais belos e fotogénicos de sempre. Nem outra coisa seria de esperar de uma pantera.
Nas religiões das divindades, os anjos descem dos céus à terra, nas religiões dos Homens, o seu caminho é inverso. Ontem o céu ganhou um anjo negro. Pantera, quando encontrares o Guttman é pedir que ele acabe com a maldição! Continuo longe de qualquer religião, mas tenho deuses na minha vida. Poucos. Eusébio é um deles. Lembro-me do jogo que mudou a minha vida e que passou a ocupá-la com muitas horas de futebol e de Benfica. Em 1992, o Benfica perdeu 2-1 em Barcelona. Desde esse dia comecei a saber de trás para a frente os nomes do César Brito, do Rui Águas, do Paneira, do Veloso, do Schwarz, do Rui Costa e de todos os outros. Nesse dia também aprendi a dizer que o Cruyff fez do Barcelona a minha segunda equipa, ex-aequo com o Académico de Viseu, o da terra. Mas antes deste jogo eu já sabia que era benfiquista, e a culpa era só dele, do Eusébio. Não sou dos que aprenderam a dizer "Eusébio" ou "Benfica" antes de "pai" e "mãe", mas sou daqueles que depois de os descobrirem e de saberem o que eles significavam, nunca mais os deixaram. As horas de futebol são agora muito menos, mas as de Benfica não. Já tentei mas não adianta, nem faz sentido deixar um amor mesmo quando a relação é conturbada.
Ontem amparei o choque e o dia seguiu normal e triste de cada vez que o via ali deitado. Hoje não deu para aguentar, não adianta tentar ser forte, só deu para não ir chorar em público. Vou-me arrepender, já sei disso, e essa será uma mágoa que tentarei compensar a cada novo golo d'O Glorioso. É que Eusébio da Silva Ferreira é descrito por todos que com ele privaram como uma boa pessoa, um bom ser humano, e quanto mais gente conheço, mais percebo que as boas pessoas escasseiam. Devia ser obrigatório despedirmo-nos delas o mais perto possível, e eu podia e devia ter estado ali, porque Eusébio é mais grande que.
O Rei morreu, viva o Rei! E o Rei é Eusébio, desde "Os Brasileiros" de Mafalala.
Não interessa o resultado. Não interessa que o Sporting tenha desperdiçado a oportunidade única de ganhar ao Benfica. Não interessa que, sem muito esforço, o Benfica tenha decidido atacar e marcar e o tenha conseguido. Não interessa que depois disso tenham faltado pernas ao Benfica. Não interessa que o Benfica tenha tido mais oportunidades flagrantes. Não interessa que o Benfica tenha tido 3 jogadores lesionados. Não interessa que o Sporting ainda não tenha dado o click para o nível dos títulos. Não interessa que a melhor contratação do Sporting esta época se chame Leonardo Jardim. Não interessa que essa contratação se tenha acagaçado e retraído quando não devia. Não interessa que o Markovic tenha tudo para ser um ídolo mundial. Não interessa que o Bruno Carvalho pareça um miúdo a festejar os golos do Sporting. Não interessa que o Rúben Amorim tenha feito um dos seus melhores jogos no Benfica. Não interessa que o lateral direito do Benfica, neste momento, tenha de ser o André Almeida. Não interessa que o Lima ande perdido em campo sem o Cardozo ao lado. Não interessa que o Maxi tenha feito uma falta - dura - só para amarelo. Não interessa que o golo do Sporting seja em fora de jogo. Não interessa o penalty claro sobre o Cardozo.
Nada disso interessa. Só interessa uma coisa: a luta de classes, como sempre! Só interessa que os apanha-bolas do Sporting sejam todos betinhos, com cabelo "à fodass".
Devemos agradecer ao Sporting. O Estádio Alvalade XXI é talvez o único lugar do mundo onde os betinhos fazem trabalho braçal. Mas o Sporting é um clube de viscondes, de aristocratas, seria de esperar que os betinhos dos apanha-bolas fossem mais leais, como todos os cavalheiros da nobreza devem ser. Mas não, postos perante um trabalho manual portam-se como todos os outros apanha-bolas da plebe e do proletariado: tentam sobreviver, usam a matreirice para ficarem com a boca fora de água, "esquecem-se" de devolver e apanhar as bolas quando ela pertence ao adversário, por vezes chegam a devolver-lhes a bola um bocadinho para o lado.
O jogo de ontem entre Benfica e Porto foi um belo espelho do que se passa na política e na vida deste país a que chamamos Portugal.
Depois do jogo, dirigentes, treinadores, jogadores e outros intervenientes do dito, decidiram fugir, mais uma vez, à análise fria do que se passou nas quatros linhas e preferiram, mais uma vez, a demagogia das arbitragens e das picardias psicológicas. Tal como PSD e PS fazem em relação a atribuição de culpas e responsabilidades políticas e defesa de honra por incumprimentos no regimento parlmentar, também no futebol o mais importante é sacudir a água do capote, não apresentar alternativas de melhora e dizer que há um factor externo que pôs uma vitória ou uma decisão política acertada em risco.
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