Decimatio, dizimação, era uma das penas aplicadas aos soldados romanos que desertavam do campo de batalha ou se amotinavam. A pena era aplicada a todos, mas só 10% a sofriam no corpo. Os soldados faltosos eram agrupados em conjuntos de dez e, através de sorteio, um deles era apedrejado e espancado até à morte, os restantes passavam a ter rações mais fracas e passavam a viver fora do campo protegido, ao pé das prostitutas e dos criminosos e mercenários que acompanhavam e auxiliavam os exércitos.
Um dos generais que mais aplicou a dizimação foi Marcus Crassus, o carrasco de Spartacus, líder da Terceira Guerra Servil, em que cerca de cem mil escravos se revoltaram contra Roma e o seu império. Algumas teses afirmam que foi a utilização deste método que permitiu a Crassus vencer Spartacus, o medo que os soldados passaram a ter do próprio general suplantou o que sentiam pelo seu inimigo.
Com um sentido diferente da que lhe deu origem, a palavra dizimação é hoje usada para caracterizar uma devastação, o desaparecimento total ou parcial de algo ou de um conjunto de indivíduos. A direita convive bem quer com o sentido actual quer com o método romano, aliás, utiliza-o como forma eficaz de chegar ou de se manter no poder. Para lá chegar sacrifica internamente alguns dos anteriores líderes e seus apoiantes, para o manter sacrifica grupos de cidadãos que servem de exemplo para que os restantes se sintam afortunados e cooperem ou fechem os olhos a esse sacrifício. A direita fá-lo sem pensar muito, fá-lo porque é inevitável para a sua sobrevivência.
Marcus Crassus, Júlio César e Pompeu, formaram o primeiro triunvirato do Império Romano, uma aliança perfeita, enquanto durou. Crassus tinha o dinheiro e a influência que ele traz, César o sangue nobre e Pompeu a fama e a glória das vitórias militares. A Crassus faltava-lhe a credibilidade, a César os aliados políticos e a Pompeu as terras para os seus soldados. Depois da morte de Crassus, César e Pompeu quebraram a aliança e tornaram-se inimigos, como é de lei em todas as alianças de conveniência.
Aqui no rectângulo estamos triangulados por triunviratos, os de dentro e o de fora. O que neste momento nos governa tem semelhanças com o romano e não tem pejo em dizimar cada vez mais e melhor. Portas tem o dinheiro e a influência dos barões do CDS, Passos Coelho as tropas obedientes a duas escolas, à da Universidade de Verão da JSD e à de Chicago, Cavaco tem a fama por ter vencido várias batalhas em que a dizimação foi inquestionável e portanto geradora de glória nas hostes da direita. Seguro e o PS continuam à espreita para transformar este triunvirato num quadrado perfeito e plenamente obediente à troika.
E no meio disto tudo como fica Spartacus e os seus escravos revoltosos? Perdidos no meio de uma Esquerda que faz jus ao ditado popular: em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão.
O exército dos escravos era formado por pessoas de vários pontos do Império Romano, locais tão afastados entre si quão afastadas eram as personalidades e características dos nascidos nas diferentes áreas. O que os uniu e o que os levou a uma das mais entusiasmantes e românticas histórias da luta contra a exploração do Homem pelo Homem, foi o acordo bem definido quanto aos objectivos comuns: libertar todos os escravos e destruir a mão que os oprimia.
Por cá temos também dois alvos bem definidos e cada vez mais opressores, a troika e o governo, mas continuamos divididos em trácios, gauleses, hispânicos, lusitanos, etc. Andamos a mandar lixar a troika e o governo, mas à primeira oportunidade aproveitamos para passar uma rasteira ao gaulês do lado, desejando que a música dele seja amordaçada e acorrentada a uma árvore enquanto nos inflamos com a nossa razão táctica superior e milagrosa.
Pires de Lima, Ministro da Economia, disse há alguns dias que era "um soldado disciplinado e leal dentro do governo", mais um que trabalha para a dizimação sem olhar a meios. É contra soldados disciplinados, leais e amedrontados pela sua própria dizimação futura que travamos esta luta. Para os derrotar temos de ser mais inteligentes e principalmente mais ponderados e calmos ao analisar os factos que se vão sucedendo, factos esses que não nos mostram os sucessos necessários para vencermos.
Todos temos dentro de nós um Spartacus a querer ser líder, mas só quando todos formos capazes de o controlar é que podemos contribuir para que o exército de escravos se liberte das amarras. O foco e a determinação são as únicas salvações dos mais fracos, e não a tentativa de liderar apontando o dedo mais vezes para os companheiros do lado do que para o caminho que se que trilhar com eles. Spartacus é o líder que mais vezes é referido, provavelmente por ser o que melhor manejava a espada, ou por ser melhor orador ou melhor estratega, mas sem os outros companheiros não existiria nos livros e relatos históricos.
O fim desta história pode ser desmotivador para quem se identifica com os escravos revoltosos. Marcus Crassus derrotou Spartacus e Pompeu deu a estocada final no resto do exército de escravos. Crassus mandou cruxificar seis mil dos revoltosos ao longo da Via Appia, o Império Romano fortaleceu-se e a escravatura continua a existir, de formas explícitas ou disfarçadas, até aos dias de hoje.
Alguns escritos daquela época, dizem-nos que a dada altura da revolta, Spartacus e Crixus se separaram dividindo o grande exército em dois. Dizem esses mesmos escritos que esta divisão teve como catalizador a diferença nos objectivos que a determinada altura deixaram de ser comuns entre os dois homens, nunca saberemos o que teria acontecido se a união se tivesse mantido, mas podemos facilmente especular que a divisão facilitou a vitória romana.
De derrota em derrota até à vitória final, é isso que gostamos de pensar na Esquerda quando mais um revês está ao virar da esquina. Para que consigamos vencer esta nossa luta é importante fixarmos o pensamento na revolta dos escravos, mas é talvez ainda mais importante que o fixemos na Via Appia e daí tiremos ilacções, não as infalíveis e incontestáveis, mas as mais honestas e unitárias. De outro modo, às derrotas apenas se sucederão novas derrotas.
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